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domingo, 10 de julho de 2011

PEDRO SIMÕES, escrevente juramentado da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Rio dos Homens.

A RUA DAS CASAS GEMINADAS

(Ao meu amigo e confrade Gibson Machado, historiógrafo e historiador do Ceará-Mirim)




Rua da Aurora - foto de JulioSenna -1939


Até construirmos a casa definitiva, tivemos um ciclo de casas alugadas. Rua da Estação, Rua São João, Rua Pedro Correia e Rua São José. Evidentemente os nomes das ruas guardam conformidade com o tempo em que as habitamos. Dessas,... cada uma com a sua história apreciável, destaco as casas geminadas da rua Pedro Correia (antes Rua da Aurora, hoje Heráclio Vilar).
Situava-se no centro da cidade e tínhamos uma vizinhança privilegiada: o cinema de Jorge Moura, a “venda” de Chico Dantas, a escola de Dona Alzira de Sá Pereira, esposa do comerciante Chicó Pereira, nossos vizinhos; o palacete de Doutor Canindé Cavalcanti, onde também funcionava o seu gabinete dentário, a casa de “Batú” de Sá, o responsável pelo primeiro “grito” de carnaval, o Zé Pereira, O Bar de Sílvio Brandão e o “Café” de Cleto Brandão, seu irmão.



Bar O Moderno de Silvio Brandão



Valmir Varela e , ao lado, parte do Cinema de Jorge Moura

A casa de Jorginho Barreto e dona Nilsen me chamava atenção, porque o piso se situava abaixo do nível da rua, diferentemente da casa da matriarca dona Coryntha Barreto, mãe de Jorginho, em frente à casa do filho, cujo piso se elevava uns dois metros do calçamento da rua. Mais adiante, Clóvis Soares conservava dois leões de cerâmica como guardiões do seu bangalô. Ainda mais adiante, a igreja de Nossa Senhora da Conceição, convergência de toda o ecantamento da cidade.
O calçamento da rua era de pedras, depois substituída por paralelepípedos. (Lembrava-me sempre daquela marchinha – “se esta rua fosse minha eu mandava ladrilhar, com pedrinhas de brilhante...”). Os canteiros guardava os pés de fícus benjamim, dividiam a rua e moderavam o trânsito de carros, carroças e animais pelo estreitamento das vias laterais.
Depois que Jorge Moura, o dono do cinema, decidiu morar em Natal, a sua casa foi adquirida por Aurelino Marinho e dona Augusta, pai e mãe dos meus amigos Franklin e Guilherme (este, já falecido). “Seu” Aurelino, todas as tardes deliciava os meninos de seis a sessenta anos, com o famoso “leite no peito da vaca”. Trazia uma ou duas vacas de leite e as postavam no canteiro em frente à sua casa onde um vaqueiro extraia do úbere do animal um leite quente que era injetado diretamente num copo já misturado com açúcar e Toddy .
“Seu” Alegria, o mágico, era dono de um circo com o seu nome. Vinha à cidade uma vez por ano para alegria da população inteira que era apaixonada por espetáculos circenses: a meninada, pelo palhaço, as mulheres, pelos “dramas”, os homens, pelas dançarinas, e todos, pelos malabaristas, trapezistas e mágicos. Registro a passagem de uma famosa rumbeira, Mascotinha, que despertou tanta paixão num dos rapazes da rua, filho de um figurão da cidade, que, se não fosse a malícia e autoridade do pai, teria fugido em companhia da estonteante artista da dança.
A maior atração do “seu” Alegria era fora do circo. Quando passava pela nossa rua, tirava folhas dos pés de fícus, as dobrava ao meio no sentido longitudinal, punha-as na boca e com um assopro que a nós parecia especial, extraia famosas melodias então em voga, para surpresa da garotada.

Valmir Varela e dona Celina, moravam no cruzamento com a rua São José, numa casa encravada num terreno aterrado, muito alto, bem acima do nível da rua. Dona Celina e sua filha Adália eram uma das maiores atrações da nossa rua. A qualquer hora podia-se ouvir as belíssimas composições tocadas no piano, especialmente no final da tarde, quando, improvisadamente, havia um duelo musical entre os Ferreiras Varelas (Celina e Adália) e os Cavalcanti (Anchieta e Lourdinha), também exímios pianistas.

Casarão de Luis Ferreira - pai de Dona Celina
Manhãzinha cedo e ao por do sol, um cheiro irresistível de pão assado descia do beco da padaria de João Neto, dobrava a casa de Aurelino, no sentido da igreja, e de Doutor Canindé, no caminho das usinas. A este aroma se associava o do café pilado e torrado em casa, fervendo no fogão de lenha de todas as casas.
Em frente ao Café de Cleto, os trabalhadores das usinas vinham em grupos, a pés, em lombos de burros e cavalos ou nas carrocerias dos caminhões. Expressões cansadas e ansiosas, chapéu de palha enterrado na cabeça, foice sobre o ombro, roupa surrada de trabalho e uma piúba no canto da boca, assuntavam o trivial do trabalho e as expectativas da noite.
Foi defronte à casa do casal Chicó e Alzira, onde se exibiu o primeiro ônibus da linha Ceará-Mirim-Natal, de propriedade de Lauri Farias, então noivo de Ieda, filha do casal. Tive a honra de ser, ainda muito criança, um os passageiros do passeio inaugural pelas ruas de Cará-Mirim, distinguido pela dupla condição de aluno de dona Alzira e filho dos diletos amigos e vizinhos da família.
Nos dias de cinema, desfilavam os pipoqueiros, os vendedores de confeitos, pirulitos, cocadas , bolos e roletes de cana. Dentre eles se destacava Inácio, que carregava um tabuleiro de madeira preso ao pescoço com uma tira de couro, contendo confeitos, chicletes, pastilhas e chocolates. Depois viria a ser Inácio Magalhães de Sena, um respeitado intelectual autodidata.
Zé Félix, uma das mais pitorescas e populares atrações da cidade, apresentava-se nos “Domingos Alegres” no cinema de Jorge Moura. Numa dessas apresentações, caracterizou-se como Carmem Miranda interpretando o “Tabuleiro da Baiana”. O público delirou de tanto prazer que a partir daí conquistou a merecida fama de maior artista da cidade. Nessa época o cantor e transformista trabalhava como servente do bar de Silvio Brandão, vizinho ao cinema.

Era em frente à casa de Batu de Sá, que os blocos carnavalescos faziam as suas melhores evoluções. Era lá que Aluizio Alves, conhecido como Aluizio “pipilza”(ou piu-piu), apresentava-se com as suas melhores fantasias. Lembro de duas “performances”: do sapo (ao som da música “Sapo não lava o pé...”) e de Disco Voador (“Eu vi, eu vi, eu vi sim senhor, n Barra da Tijuca um isco voador...”). Era lá também que se formava o bloco dos casados, a que Clóvis Soares deu o nome de “Chamas que não aquecem”.
Era no “Beco de Chico Dantas” que os casais “pecaminosos” realizavam os seus atos de amor, acobertados pelo escuro e o vazio de casas. Tempos depois, a “esquina de Chico Dantas” abrigaria a rapaziada preocupada com o futuro da cidade, do país e do mundo. Era também por lá (ou na esquina da loja de Manoel Correia) que em noites de lua MIsael afinava seu violão e aguardava os seresteiros para se perderem nos caminhos da boemia que findava no Cipó.
E também onde Antonio Domingos, a locomotiva humana, soprava baforadas de fumaça e assobios na condução do seu trem imaginário. Onde Maria Leonor e outras devotas, pelas cinco e meia da manhã, se dirigiam contritas e disciplinadas à primeira missa do dia.
Onde os cachorros cachorravam, os gatos azunhavam, os caminhões apitavam naquele som fanhoso e desafinado que só ele, as bicicletas avisavam os pedestres com os seus “trim-trim” e “fon-fon”. Os botadores d´água, com os burros carregados de barris, estalavam os seus chicotes estimulando os “roxinhos” a espantarem a preguiça.
E onde Café Filho, no fim dos anos quarenta/início dos anos cinqüenta, realizou um comício de sua cruzada sindicalista que lhe valeu o titulo de comunista, apoiado pelo usineiro e ex-prefeito da cidade, Luiz Lopes Varela, depois senador da República, assumindo o mandato de Café, de quem era suplente, quando este se elegeu Vice-Presidente da República na chapa de Vargas.
Comício de Café Filho na rua da Aurora



Esta é uma das ruas de Ceará-Mirim, terra onde cada uma das casas, calçadas e pedras das vias públicas, contam uma história de passado picaresco, heróico, dramático e glorioso.
Por isso digo como Fernando Pessoa que nenhum rio é mais belo que o Baquipe, porque este é o rio que banha a minha aldeia.

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